quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Di Cavalcanti

Tarde fria, chuva fina e ela sentou-se a meu lado, no banco de terminal rodoviário no centro da capital paulista. Era uma figurinha pequena e desculpou-se por tomar pequena parte do banco de pedra. Falou que a cidade hoje era bem diferente dos tempos em que vivera com seu marido, um músico de sobrenome Puccini, como o compositor de óperas italianas. Tinha ido a Lucca, na Itália, algumas vezes visitar sogra e cunhados, por quem fora bem recebida. Perguntou se eu já tinha ido à bela Itália.
O Puccini dela tocava violino e se apresentou em vários shows. Deu a ela as maiores oportunidades de sua vida, como a de ter conhecido Ataulfo Alves, com quem dividiu o palco. Claro que seu marido não ficava na frente, tocava lá atrás, porque o que estava em moda era mesmo o violão. Nos tempos da Jovem Guarda ele chegou a se apresentar em vários shows comandados pelo trio Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléa. Também se apresentou em teatros lotados. Ela sempre viajava com ele.
Certo dia conheceu e frequentou também a casa de artistas plásticos como Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti. Foi aí que interrompi sua narrativa para perguntar: "A senhora conheceu o grande Di Cavalcanti?". Sua resposta, meio envergonhada, um misto de orgulho e saudosismo: "Vou lhe contar um segredo guardado há mais de meio século: posei para ele. Posei nua. Ele pintou um dos quadros de suas mulatas comigo, fui ao seu estúdio a pedido de meu marido e por semanas fiquei ali, como vim ao mundo e ele entregue aos pincéis".
Quis saber mais do grande mestre da pintura. Lembrei que vi uma das mulatas em exposição na Bolsa de Mercadorias e Futuro, em São Paulo, e folheei mentalmente alguns de seus livros em que aparecem as famosas mulatas. Nenhuma delas me lembrava sua musa-maior Marina Montini, a mais conhecida delas, recentemente falecida. "Li algo a respeito", disse a senhora Puccini.
Virei e não vi mais a mulata de Di Cavalcanti. Tinha sumido na São Paulo de hoje, não de outrora, da garoa.

Emiliano Di Cavalcanti, autor de pintura, escultura e murais magníficos, surpreendentes mesmo