segunda-feira, 29 de junho de 2015

Zé do Caixão

Todo fim de semana pegava a ponte aérea Rio-São Paulo, participava de um jornal mensal carioca, "Repórter" e fui encarregado por aqui, em São Paulo, para conversar com um colaborador e colunista, José Mojica Marins, que assinava como seu principal personagem elogiado por Glauber Rocha, Zé do Caixão. Ele deveria escrever coisas monstruosas, surreais, mostrar quem sabe imagens do inferno em que estávamos vivendo, a ditadura militar. Mas não. O que o estranho personagem de si mesmo escrevia era suas supostas memórias sexuais, em que relatava, por exemplo, como sua babá o levou a fazer sexo aos seis meses de idade. O editor Luiz Alberto Bettencourt me encarregou de conversar com Zé do Caixão e dispensá-lo do jornal. Liguei para ele e fomos nos encontrar em um boteco pelos lados da Santa Casa.
Pedimos dois cafés puros, iniciei a conversa dizendo que a nossa conversa tinha por finalidade dispensá-lo da função de colunista do jornal. Zé do Caixão quis saber a razão. Aí entrou em cena aquilo no que ele é craque e eu reles amador: a representação como em um palco. Fiquei com a cara mais triste do mundo, cabisbaixo, diminui o tom de voz e quase aos sussurros falei: "Lamento...Deve ter outras razões que nós desconhecemos para mandar você embora". Ele insistiu. Menti. Disse que eram os militares, os censores que haviam pedido sua cabeça. O jornal não era censurado, ele ia para as bancas e se os militares achassem que deveria ser apreendido na hora em que estavam sendo entregues as viaturas iam recolhendo. Zé do Caixão elevou a voz: "Eu sabia! Eu sabia! Sabia que incomodava os malditos militares. Eles pediram minha cabeça. Eu incomodei. Foi por isso. Só por isso".
Duas prostitutas começaram uma briga que as levou ao chão. Uma bateu na outra com sapato salto alto. Houve sangue. Alguém separou as mulheres. Uma xingou a outra. Alguém ficou sem sapato porque o salto caiu na rua. Elas foram embora. Daí, Zé do Caixão começou a contar vantagem. Disse que sempre que via briga de mulheres estendia a mão e lançava o desafio: "Quem cuspir aqui ganha a briga sem necessidade de dar tapas e socos". Aí ele disse que tirava a mão e uma acabava cuspindo na outra, dando início a uma briga descomunal. Duvidei que ele fizesse isso. Pelo menos na nossa frente ele nada fez. "É que eu estou emocionado, cara, sabia que os militares me odiavam, que eu os incomodava, agora tenho certeza absoluta", disse.
De vez em quando o vejo pelas ruas do centro de São Paulo. Moramos hoje bem perto um do outro. Uma vez o encontrei em uma formatura da minha filha Juliana, turma de Direito da PUC. Ele estava por lá. Um de seus filhos também estava se formando, coincidentemente na mesma turma. Um colega da Juliana ao reconhecer aquela figura sem máscara nem unhas compridas deu um tapa na testa, foi ao banheiro e ao olhar no espelho disse: "Bebi demais, acho que exagerei na dose hoje. Não é possível, estou vendo o Zé do Caixão, estou num fogo danado. Não pode ser verdade".

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Carlos Rangel

Aprendi muitas lições com o colega Carlos Rangel nos tempos em que trabalhamos juntos na Folha de S. Paulo, a partir de 1975. Tarimbado, ele costumava chamar a todos de "coleguinha", "companheiro", "amiguinho", talvez por não lembrar do nome de quem estava ali à sua frente ou que passavam por ele a toda hora. Alto, agitado, sempre com pressa, carregava uma pequena pasta onde guardava suas anotações e suas lembranças. Teve uma tragédia nos cafezais paranaenses, uma geada pôs tudo abaixo e ele foi enviado para cobrir. Ao chegar na cidade, montou verdadeiro central de informação formado aos poucos e talvez até impensadamente. Ele ficava no hotel e os demais repórteres lhe passavam as informações que ele coletava e transmitia via telefone para a Folha. Ganhou o Prêmio Esso com essa cobertura.
Passou por todas as redações de jornal em São Paulo. Trabalhou no Diário Comércio e Indústria onde foi editor de economia "sem conhecer sequer o abecedário do economês", dizia; Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e revista O Cruzeiro. Ao chegar aos 40 anos de idade, morando no Rio de Janeiro, sua terra natal, para onde voltou em 1979, reuniu algumas de suas reportagens favoritas e ele mesmo publicou um livro que pagou com parte do seu salário, parte da antecipação das férias e do 13o. além do dinheiro do aluguel da casa. Seu filho, de seis anos à época, perguntava o que ele fazia no jornal para se ausentar tanto. Dividia seu tempo entre a redação do jornal e da editoria política do programa "Abertura" da rede Tupi de Televisão, dirigido por Fernando Barbosa Lima que, em seu livro de memória fez elogio a este grande repórter dizendo que ele o ajudou bastante a formatar um dos melhores programas de TV de todos os tempos, que tinha entre outros apresentadores nada menos que Glauber Rocha.
 Carlos Rangel, autor do livro "A hora de enterrar os ossos" de 1978, antologia de suas reportagens