sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Murilo Antunes Alves

O faro de repórter nunca o deixou. Murilo Antunes Alves, um apresentador da bancada do jornal do meio-dia, no meio de tantos veteranos como Hélio Ansaldo, gente que se somado o tempo em que tinham vivido seguramente dava alguns séculos, daí o povo ter apelidado o programa de "Jornal da Tosse". Murilo era versátil. Um conhecedor dos rituais a que só os vetustos cerimonialistas sabem. No anúncio da despedida de Jânio Quadros pedi a ele para redigir o texto, o que ele fez com a elegância de sempre. Vereador por um mandato, instituiu o uso obrigatório do cinto de segurança, que tem salvado muitas vidas, coisa que o carioca ainda não se convenceu. Por que você está fora do vídeo, perguntei em sua sala na TV Record, e ele mostrou o próprio rosto: "Conversei a respeito outro dia com a Adriane Galisteu, falei para ela aproveita menina, aproveita porque o tempo está girando em seu favor. Ninguém quer velho na tela, não combina". Um Mestre, o grande Murilo Antunes Alves

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Engenho

Corria os anos 1972, plena ditadura, plantão difícil, muito trabalho. Colega que cobria a área de Economia estava ali naquele domingo para enfrentar o que viesse pela frente. O chefe de reportagem deu matéria de polícia: moça linda que desfilava em escola de samba fora flagrada fazendo sexo oral no Engenho do Erasmo, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico, naquele tempo apenas um local esquecido e abandonado na periferia da cidade de Santos. De posse do boletim de ocorrência o solerte repórter fez sua matéria, que passou por copydesk, ou redator, editor, secretário e pelo diretor de redação. No dia seguinte a moça foi trabalhar normalmente. Todos em sua rua a aguardavam com o jornal na mão. Seu caso havia saído no jornal, só faltou sua fotografia, o resto estava ali com nome, endereço, profissão etc. etc. No dia seguinte ela deixou a casa onde morava e nunca mais se soube dela.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Manchetes

"Notícias Populares" circulou por 37 anos diariamente. Lançado no dia 15 de outubro de 1963 pelo empresário Herbert Levy para concorrer com o "Última Hora", de Samuel Wainer, passou ao controle do grupo Folha em 65. Revolucionou o jornalismo popular com textos curtos, muitas fotos e manchetes de impacto. A maior delas foi "Nasceu o Diabo em São Paulo", de 1975, sobre um pobre coitado que veio à luz em uma cidade do ABC paulista. O autor da matéria foi meu colega na Folha daqueles tempos, Marco Antônio Montandon. Um rapaz quieto, tímido, que vestia em dias de frio uma capa daquelas imortalizadas por Will Eisner, parecia detetive de quadrinhos. Era um plantão de fim de semana, o chefe o havia designado para descobrir o que havia em certo hospital do ABC onde se falava no nascimento de um bebê com deformações, coisa de chifre, pés tortos, que dava gargalhadas fenomenais para surpresa das enfermeiras e médicos. O resultado foi uma matéria curta, com poucas informações. O chefe pediu para o repórter que reescrevesse a reportagem bem ao seu estilo, com muita imaginação a partir do que ele havia visto, sentido, observado. A reportagem de Montandon chegou à redação do "NP" e seus editores fizeram a festa. Um dia conversávamos a respeito do que é manchete em jornal. Em sua modéstia ele teorizava: "Manchete não se explica, geralmente o editor cisma com algum assunto, dá destaque e aí ela ganha outra dimensão". Estudiosos de jornalismo um dia reunirão as reportagens deste grande talento e quem vai gostar de ler - tenho certeza - será o coleguinha ítalo norte-americano, um certo Gay Talese.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Poder

Tinha voltado da rua, na redação do Estadão conversávamos bastante entre uma espera ou outra quando desciam as matérias ou quando o editor estava despachando na sala do diretor. Repórteres e copydesks, os redatores, cargo hoje já extinto, falávamos do chamado quarto poder. Emiti uma opinião, algo próximo à realidade: "O repórter de Política está próximo do poder, é sua matéria prima, tem de cultivar fontes, vira e mexe está no Executivo como no Legislativo e no Judiciário. Porém, vejam que falo por mim, volto para casa e meus quatro filhos vão para a escola...escola pública, porque o que ganho como repórter de um dos maiores jornais mal dá para manter a comida, o básico. Por isso meus filhos estudam em escola pública que, como todos sabem, é de péssima qualidade. Poder, quarto poder, tudo balela". Um redator ouviu, anotou, defendeu seu mestrado na PUC com base nisso. Foi o que ele garantiu no dia da apresentação do trabalho. Escreveu até um livro que teve duas edições, com prefácio de um dos colegas que mais admiro, o José Hamilton Ribeiro. Só não escreveu de quem tinha vindo a ideia. Quer dizer, falar ele fala, diz quem foi seu inspirador. Só não escreve. Não quer deixar para a posteridade o que é um fato. Deve ser isso.

sábado, 23 de novembro de 2013

Índio

Estava no plenário da Câmara dos Deputados, faltava pouco para iniciar a sessão, uma das inúmeras sessões preparatórias para a Constituinte, que resultou na proclamação da atual Constituição, em 1988. Sentado em uma das cadeiras estava o ex-deputado Mário Juruna, um índio xavante eleito em 82 na legenda presidida por Leonel Brizola, que o levou a tiracolo nos comícios no Rio de Janeiro, por onde o líder indígena se elegeu. Foi o primeiro e único índio a ocupar uma cadeira de representante do povo na Câmara Federal até hoje. Não tinha mais mandato mas, mesmo assim, deveria ter algum emprego em Brasília. Circulava com certa desenvoltura no plenário. Os seguranças o cumprimentavam como se ele ainda estivesse exercendo suas funções como representante do povo carioca. Juruna ficou famoso por andar com gravador a tiracolo. Gravava tudo o que lhe prometiam e depois mostrava para a imprensa. Deu entrevista falando que "deputado só defende interesse de banqueiro, deputado só defende interesse de empresário. Deputado só defende interesse de capitalista. É por isso que o Brasil tá desse jeito". Não tive a menor ideia de entrevista-lo. Fui furado por um colega do Jornal do Brasil. Naqueles agitados tempos não havia tempo para arrependimento.

domingo, 17 de novembro de 2013

Ilha Grande

O governo militar estava dando sinais de enfraquecimento, Leonel Brizola havia ganho o governo do Rio, alguns jovens organizaram um Festival de Música na Ilha Grande, que funcionava em pleno vapor. Um pessoal arrumou um lugar, nome de preso a quem eu deveria formalmente visitar, dormi na casa de colega jornalista cujo irmão havia passado pelo famoso presídio onde ensinou tática de guerrilha para um grupo de presos comuns, se juntaram e acabou dando no núcleo que passou a dominar os subterrâneos daquele inferno. Na travessia de Angra dos Reis para lá ouvi a história de uma gaúcha que iria visitar seu marido, a quem conhecera por fotografia publicada em fotonovela (que vendia em bancas). Achou o guri bonito e traduziu nos traços dele algo que implorava pelo seu amor. Fez uma visita e depois não o deixou mais. A recepção foi feita por um certo William da Silva, líder do Comando Vermelho, que ofereceu sua cama para eu dormir. Levantou o colchão e me mostrou dezenas de armas como facão, peixeira, espada e uma série de objetos cortantes. À noite ele visitava as celas e conversava com todos os demais presos. No dia seguinte mataram um boi e fizeram churrasco. Nem precisei sair da cela, eles providenciaram o banquete. Um padre da pastoral carcerária surgiu. Dois dias só ouvindo relatos de presos foi o bastante para compor uma reportagem, que não foi feita. O Jornal do Brasil deu nota a respeito do festival. Alguém havia passado os dados de dentro do presídio.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Fortuna

Em um belo dia, meu filho me disse que o vizinho que estava se mudando era um amigo. Estava sentado na poltrona indiferente à bagunça da mudança. Eu o reconheci no corredor. Já havia me encontrado muitos e muitos anos atrás com ele na Folha, onde era o responsável pelo Folhetim. Ele e Tarso de Castro, criadores do Pasquim. Já tínhamos conversado também em Piracicaba, onde ele foi um dos idealizadores do famoso Salão de Humor e também no Rio, ainda nos anos 60. Falávamos todos os dias. Os assuntos eram os mais variados. De manhã bem cedo ele batucava sua máquina de escrever. Dirigia algumas publicações, tinha de escrever 70 toques rigorosamente para que tudo desse certo. Algumas vezes saía com o filho André, que puxava um carrinho de madeira. Brincava com os dois: "Vocês vão pegar umas meninas pelos bares da vida, não é mesmo?". Uma vez ele disse estar na dúvida. Millôr havia lhe dito que o Barão de Itararé era apenas e tão somente um frasista. Ele discordava. Toda vez que ia entregar algum desenho queria que eu avaliasse. O mesmo com o texto, primoroso, de uma elegância ímpar. Assim era o grande maranhense, premiado em exposições de muitos países. Grande artista.

domingo, 3 de novembro de 2013

Cláudio Abramo

Foi meu diretor de redação na Folha de S. Paulo, onde comecei a trabalhar em 1975. Vez ou outra cruzávamos na redação, ele conversava, fazia comentários às vezes ácidos sobre determinado assunto ou certas pessoas de quem não gostava. Brandia sua bengala e apontava para os adversários. Assim era Cláudio Abramo, um mito do jornalismo.
Num sábado de plantão fui encarregado de cobrir a visita de dois irmãos donos de revista. Na entrada da sala do dono do jornal, seu Frias, ele aguardava as figuras importantes. Perguntou se eu estava com a carteira no bolso. Disse que sim. "Esconda, esses dois podem roubar". Achei graça e ele sério. "Pode voltar para a redação, deixa que eu escrevo a respeito da visita, faço a nota. Mas não vá direto para o quarto andar, vá ao restaurante, almoce e na volta diga pro seu chefe que eu trato do registro desses dois ilustres".
Lembro que dos novos repórteres tinha carinho especial por mim e por Getúlio Bittencourt. Perguntava que livro estávamos lendo. Eu mostrava, ele dizia ter lido no original. Muitas vezes Getúlio o surpreendia, não só mostrando o livro, mas presenteando-lhe com uma dedicatória.
Foi saído da redação da Folha, ganhou o posto de correspondente de Paris, voltou como comentarista da página 2. 
Muitos e muitos anos depois conheci sua filha Bárbara, hoje horoscopista da Folha, e outro filho que leva seu nome acrescido de Weber, militante de assuntos éticos na política, a quem eu disse ter trabalhado também com sua mãe, a cartunista Wilde no Estadão.
Lembro que nos anos 80 reencontrei Cláudio na condição de comentarista de política da Folha. Era véspera da disputa presidencial entre Tancredo e Maluf e eu editava o jornal do PMDB. Apresentei a ele toda a direção do partido, creio que o grande Cláudio gostou de ver pessoalmente quem ele só tinha contato à distância. Estava feliz, pois estava novamente nas ruas.


Cláudio Abramo, responsável por uma Folha legível, moderna

domingo, 27 de outubro de 2013

Passarinho




O tio da minha infância gostava de pegar passarinho. Armado com sua gaiola, presa na garupa da bicicleta, ele ia para o trabalho todas as manhãs pensando no bichinho que ia pegar com alçapão, às vezes com um visgo que imobilizava os pezinhos das belezinhas que, com seu canto, muitas vezes acorda os seres humanos, cada vez mais complicados, tanto que reclamam deles. Imagina implicar com o canto dos pássaros. Tinha uma coleção desses seres alados, todos engaiolados e pendurados por um prego na imensa parede de madeira no sítio do meu avô. O tempo passou.

Hoje meu tio abandonou seu maior vício – não creio que tivesse outros problemas em sua vida simples -, acho que bastava este. Vive no meio de passarinhos livres e soltos, que vem visitá-lo à beira da Represa Billings, no ABC não de Castro Alves como queria Jorge Amado, mas das lutas metalúrgicas que entraram para a História, liderados, nos anos 70 do século XX, por um ferramenteiro que ocupou a presidência da República por dois mandatos.

Manoel de Barros, grande poeta, em visitas pantaneiras em tempos idos, disse para o amigo Guimarães Rosa: “O canto desse pássaro diminui a manhã”. Rosa tinha uma sede anormal por frases com ave: “Me olhou sentado na frase”, escreveu Barros.

É preciso dizer mais alguma coisa?
 

domingo, 20 de outubro de 2013

Escrever telenovelas

Fazia secretaria de jornal, o que obrigava ir pelo menos uma vez por semana na gráfica acompanhar a rodagem naqueles chumbos, conferir as provas, verificar a ordem das matérias já em papel, ver se tudo estava certo. Um dos secretários gráficos estava sempre à procura de notícias, recortava e guardava em uma pasta. Contou que seu sogro era escritor de telenovelas, e que se interessava bastante por notícias que lhe inspirariam a escrever cenas fortes a partir da realidade. Um dia, ele falou com o brilhante autor de telenovelas a respeito de um repórter que estava à procura de novos horizontes, queria expandir seus conhecimentos de outras artes além de escrever unicamente em jornais. Queria ser o que hoje se chama multimídia, que é a qualificação de todo jornalista ou comunicador.
Marcou a princípio um almoço na casa do figurão, pelos lados do Morumbi. No dia acertado disse que o famoso autor de telenovelas havia sido convocado às pressas pela Globo, para onde estava de malas prontas, pois tinha feito sucesso retumbante na antiga TV Manchete. Bom. Marcamos e remarcamos várias vezes. Nada. Até que um dia o próprio rapaz, humilde, simples, confidenciou que as duas filhas do figurão é que tinham barrado nosso encontro como, aliás, faziam com todos aqueles que procuravam se aproximar do querido e rendoso pai (elas eram suas assistentes).
Uma noite em festa memorável em casa de atriz teatral conheci um dos maiores atores de teatro, TV e cinema brasileiro, Raul Cortez, com quem troquei algumas ideias e lhe contei o caso do quase-fui-escritor-de-telenovelas. Ele riu, disse que havia passado por situações semelhantes e que a pessoa em questão era conhecidíssima nos meios como alguém de fato egoísta, fechado em duas assistentes nomeadas por ele, justamente suas filhas.
Já tinha esquecido o episódio, mas as lembranças da conversa com Raul Cortez, extremamente agradáveis, é que ficaram na memória, afinal as coisas grandes é que nos motivam a enfrentar o nosso dia a dia.



Raul Cortez, um dos maiores atores de nossos palcos em todos os tempos

sábado, 12 de outubro de 2013

Tim Lopes

Trabalhamos juntos por alguns anos. Nunca o vi aborrecido ou magoado. Sempre alegre, tinha aprendido as manhas todas na redação de Samuel Wainer, por onde entrou como contínuo. Foi o clássico diretor quem lhe deu o apelido de Tim Lopes. Seu nome de batismo era Arcanjo. Mas na redação carioca do jornal "Repórter" nós o chamávamos de Tim Lopes. Nunca faltou ideias nem pautas para ele, para os colegas, para todo mundo.
Sua grande preocupação era com os gatos pingados. Os chamados excluídos. Uma vez ele marcou um debate com toda a fauna do Mangue, o local cantado por Manuel Bandeira, já em seus dias finais. O centro do debate era sexo, evidentemente. Estávamos na ditadura e o que mexia conosco não era a visão marxista das coisas, mas fazer exatamente como queria fazer o lendário Samuel Wainer, falar de assuntos populares com conotação política.
Nesse dia no Mangue bateu uma fome danada e no boteco só tinha uns pães amanhecidos e mortadela safada. Tim pediu, mas nossos colegas de redação o impediram de beliscar o para ele apetitoso sanduíche, poderia fazer mal, não queríamos que ele sofresse justamente em uma parte sensível do corpo que é o estômago.
Tantas histórias deste meu companheiro com quem dividi a autoria do primeiro livro, "Terror Policial", Global, 1980. Agora seu filho Bruno Quintella, que vi na barriga da mãe, acaba de ganhar o prêmio pelo filme "Histórias de Arcanjo - um documento sobre Tim Lopes", da Globo Filmes.
Concorreu com tantos outros filmes no Festival Rio 2013. Parabéns.
Tim Lopes viverá sempre!

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A Saga

O escritor João Antônio, autor do já clássico "Malagueta, Perus e Bacanaço", com quem tomei alguns pileques, sempre deu opiniões e sugestões maravilhosas, uma delas que eu escrevesse a história dos imigrantes japoneses no Brasil. Integrante da revista "Realidade", hoje estudada em várias universidades como exemplo de bom jornalismo praticado por aqui, teve participação intensa em sua redação, como também havia editado, no Rio, a "Revista de Cabeceira do Homem" pela Civilização Brasileira.
Não me animou a pauta, achei que não havia disposição para investir em algo distante do tempo e apenas próximo do coração. Muitos anos mais tarde fiquei surpreso ao ler o que o meu amigo Fernando Morais escreveu em seu "Corações Sujos", a respeito de um bando de fanáticos que nunca aceitou a derrota do Japão na II Guerra Mundial. Magnífico, simplesmente o melhor livro do grande biógrafo de tantas personalidades influentes (ele prepara as biografias de Lula, Antônio Carlos Magalhães e José Dirceu).
Perdi a pauta do João Antônio que me foi apresentado pelo Professor Wladyr Nader da PUC na redação da Folha de S. Paulo onde trabalhávamos. Muitas foram as ideias que ouvi pelas calçadas da avenida Paulista em conversa com o grande escritor. José Castello também conta que trocou mil confidências com João pelas ruas do Rio, que ele tanto amou.

O escritor João Antônio, autor de alguns livros indispensáveis para o Brasil de hoje

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A longa viagem



Visto assim à distância parece que estamos viajando no tempo, em busca de um passado cheio de glórias. Mas, pensando melhor, vamos ver que a vida mudou pouco. Dias atrás conversava com uma senhora que me falou de sua filha, casada com Ricardo, um menino que morava na mesma rua em que cresceram meus quatro filhos. E onde está Ricardo? Na Irlanda. Fazendo turismo? Não. Trabalhando. Ah sim, como Ricardo se formou, fez faculdade, pós-graduou em Informática, deve estar fazendo inúmeros trabalhos nesta área tão promissora, não é mesmo? Nada disso. Ricardo está se virando como peão em terras irlandesas. Sua esposa, a filha desta sorridente senhora com quem eu conversava, se formou cabeleireira, ganhou uma profissão e soube que há trabalho na Europa para onde foi levando a tiracolo seu marido.
Anos atrás um outro Ricardo, meu irmão, fez o caminho inverso de vovô. Foi trabalhar no Japão em uma fábrica. Engenheiro mecânico formado pela Unicamp, a universidade estadual de Campinas, trabalhou em fábrica de freios, depois foi para a Honda em Manaus e soube que o velho Continente precisava de mão de obra. Não foi trabalhar como engenheiro, mas como peão de fábrica. Juntou dinheiro e comprou apartamento em Santos, onde vive hoje longe da profissão na qual tanto se empenhou. Ricardo, meu mano, se deu bem porque entrou na Receita Federal onde terá uma aposentadoria excelente daqui a alguns anos. 
Meus avós vieram na primeira leva. Meu avô Higa veio no Kasato Maru, em 1908. Meu avô Chinem veio na terceira ou quarta leva de migrantes. Papai não se lembra em que ordem veio aquele navio, mesmo porque há poucos registros em sua memória. O certo é que meus dois avôs sonharam em voltar para o velho continente, mas não conseguiram, partiram antes de conseguir atingir o sonho que os acalentou a vida toda. Creio que foram felizes enquanto passaram por terras brasileiras. Deixaram como herança o exemplo de suas vidas. Creio que isso é alguma coisa.



terça-feira, 24 de setembro de 2013

Minha primeira lembrança


Nunca tive certeza de minha primeira lembrança de vida. Se tivesse de ganhar a vida com data exata dos acontecimentos estaria estendendo a mão para pedir alguns trocados.
Sei que há pessoas que fazem isso muito bem: sabem o que aconteceu tal fato, lembra detalhes, mas não é o meu caso. As lembranças aparecem fragmentadas. São trechos mais propriamente do que um filme inteiro a ser contado. Lembro, por exemplo, de admirar um primo meu, Carlinhos, a quem tinha amizade e muito amor. Lembro que ele amava meu avô. Tanto que chorou até passar mal quando vovô nos deixou. Disse a ele, não chora, ele não é seu pai. Dois ou três meses depois disso Carlinhos nos deixou. Foi embora não sei com quantos anos de idade, talvez 5 anos, devia ter a mesma idade que eu ou meus irmãos, todos com diferença de 2 anos, verdadeira escadinha de gente. Uma vez estava correndo na escola e alguém pôs o pé na frente, caí e desmaiei. Foi o meu primeiro desmaio, aos 10 anos de idade. O segundo só viria a acontecer 50 anos mais tarde, algo que me deixou apavorado, mas foi somente um susto. Ainda bem.
Outra lembrança que vem à mente é com a amizade com outro avô, Higa, que aportou por aqui no Brasil vindo na primeira leva de imigrantes japoneses, o navio Kassatu Maru. Já faz parte da história das migrações, afinal ele veio em 1908. E por que sei disso? Ora, porque poucos estrangeiros vieram para cá, a não ser os negros caçados a laço na África. Foi para substituir esta mão de obra escrava que o governo brasileiro passou a permitir a vinda de estrangeiros para trabalhar em nossa lavoura. No caso dos meus avós, eles vieram para trabalhar na colheita do café. Meu avô sabia dirigir automóveis e trabalhou para uma figura que viria a ser presidente da República – só que nesta época ele já estava colhendo suas orquídeas em seu sítio na cidade de Pedro de Toledo, no Vale do Ribeira.
A convivência com meu avô Higa é uma das minhas doces lembranças da infância. Tinha 5, 10, 12 anos, não lembro. Tenho tudo guardado na memória, quase não há registro fotográfico. Para conseguir fotografias de vovô na comemoração do centenário da imigração em 2008 tive de recorrer às minhas primas.
A cada dia as lembranças se vão, principalmente quando tento conferir dados com pessoas mais antigas e com melhor memória do que eu. Alguns dados não batem. Vou ficar como aquele aluno que tinha lembrança doce da professorinha que lhe ensinou o beabá, nunca quis reencontrá-la com medo de ver uma senhora totalmente irreconhecível, diferente de sua memória. Na falta de dados precisos costuma-se inventar, só que como não sou ficcionista nem novelista só me resta rascunhar tudo isso e deixar de lado para quem sabe um dia fazer o quê.