domingo, 23 de fevereiro de 2014

Lourenço Diaféria

Naquele dia a redação da Folha de S. Paulo estava agitadíssima. Ano de 1977. Nosso colega Lourenço Diaféria estava preso. Adilson Laranjeira, meu chefe, que me entregava a pauta de todos os dias me encarregou de outra tarefa: teria de ir à casa do nosso companheiro e ficar por lá para dar algum tipo de proteção (quem sou eu!) para esposa e filhos. Peguei o fusquinha amarelo e pedi ao motorista para ir para os lados do Sumaré, travessa da Heitor Penteado. Toquei a campainha do sobrado branco, a esposa de Diaféria me atendeu no portão e agradeceu tudo o que o jornal estava fazendo pelo marido, mas dispensou meus serviços de segurança. Expliquei que minha presença ali era simbólica, o máximo que eu poderia fazer diante de algum atentado à integridade da família seria ligar para a redação e avisar. Voltei à redação onde peguei uma pauta do dia a dia.
Diaféria foi preso por causa de uma crônica dedicada a um herói fardado. Era tempo da ditadura militar. O sargento do Exército viu uma criança ser atacada por ariranha, se jogou no poço e a salvou. Só que o militar foi devorado e morto pelo bicho. Virou herói, aos olhos do cronista, que o comparou à estátua de Duque de Caxias, bem próximo da redação, sempre suja pelos pombos. Diaféria foi preso, a Folha que havia publicado em branco o espaço reservado à crônica se viu em maus lençóis, Cláudio Abramo caiu, foi substituído por Boris Casoy. O cronista foi absolvido 3 anos mais tarde.
Lourenço Diaféria escreveu um dos grandes livros de nossa literatura: "Berra Coração". Mas escreveu também crônicas excelentes, de qualidade exigida por Rubem Braga.
Eu o encontrei inúmeras vezes em lançamentos de escritores amigos nossos. Como também sonhamos com projetos culturais que deram em nada. Mas a vida é assim mesmo.


                                                        Diaféria, um dos maiores escritores brasileiros

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Esmeraldo Tarquinio

Era seguramente o nosso Martin Luther King. Foi na mesma época que aconteceu. Esmeraldo Tarquínio foi eleito prefeito em voto direto na cidade de Santos. Ano de 1968. Só que estávamos numa ditadura militar e os milicos, claro, não queriam ver à frente da cidade praiana um negro. Um negro combativo. Um negro digno. Antes de ser eleito prefeito ele tinha sido deputado estadual. Ocupava bem os microfones, a TV, os jornais, falava que lutaria até o fim de seus dias para mostrar a todo brasileiro como tinha sido injusto o ato dos militares ao impedirem sua posse. Não havia acusação nenhuma para que ele não assumisse. Não houve, aliás, qualquer tipo de acusação.
Convivi de 1970 a 74 diariamente com Esmeraldo, como alunos que fomos da Faculdade de Comunicação de Santos. Um homem admirável, capaz de levantar grandes questões para discussão em aula.
Mas houve um episódio que mostra muito bem quem era de fato este homem. Meu tio José, motorista de praça, foi assaltado por uma quadrilha e obrigado a dirigir pelo porto de Santos, silencioso, em uma daquelas afrontas à dignidade humana. A quadrilha fez uns roubos e sobrou para o taxista que conduziu os bandidos sob arma de fogo. Preso, meus tios procuraram o advogado Esmeraldo Tarquínio. Sua defesa foi brilhante. Tio José foi absolvido por unanimidade. Meus tios foram pagar o serviço, Esmeraldo disse que não era nada, ele não cobrava quando se tratava de pobres. Um de meus tios vendia flores na feira-livre e passou a entregar flores para a esposa de Esmeraldo todas as semanas.
Tentei falar com ele a respeito, Esmeraldo nunca quis saber de gratidão, achava isso desnecessário.
Era um homem de paz, honrado, sincero, honesto, idealista. Um grande homem.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Fernando Collor e Olavo Setúbal

O então governador das Alagoas tinha contato bem próximo com o editor de Política do Estadão. Nunca escondeu de ninguém que queria ser Presidente da República. Todas as semanas eu recebia um telefonema do capitão Dario, seu chefe da casa civil, que dizia mais ou menos como uma senha, "olha, o chefe vai aí para São Paulo, pode nos encontrar em 5 horas em tal lugar". Pedia para não publicar o resultado de certos encontros.
Desta vez a reunião foi na casa do presidente da Federação do Comércio, Abram Szjman, que recebia a todos com sua mulher Cecília e os filhos. A casa mais parecia um museu, tal o número de originais de quadros na parede: Tarsila, Di Cavalcante, Portinari e por aí vai.
Eis que surge na porta o dono do banco Itaú, Olavo Setúbal. É cumprimentado pelos anfitriões e Collor se abaixa para falar em meus ouvidos:
- Esse aí tem alguma importância?
Digo para ele que o fato de ser dono do Itaú já é de grande, de suma importância. Mas ele não se conforma e cola de novo em meus ouvidos:
- Isso eu sei...
Aí foi a minha vez:
- Governador (eu o tratava assim), o doutor Setúbal articulou com Tancredo a transição para o fim da ditadura militar, foi ministro das relações exteriores e tentou articular o Mercosul.
Ele me interrompeu. Doutor Olavo já estava próximo.
Collor abriu os braços e disse de alto e bom som:
- Ministro....
Cai o pano.
                                                        Fernando Collor e Olavo Setúbal

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Getúlio Vargas

Tinha de, em todas as manhãs, comparecer ao gabinete de deputado que presidia comissão que investigava o sistema financeiro nacional, por coincidência era vizinho do deputado gaúcho Alceu Collares, que tinha como chefe de gabinete uma figura ímpar: um sujeito de bigode retorcido que ia de uma ponta à outra da cara, como o Senhor Morsa de desenho animado. Elegante, macio no falar, ele me convidou para esperar no gabinete que chefiava já que algumas vezes me via postado no gabinete vizinho, fechado ainda àquela hora.
Disse ao Senhor Morsa que não conhecia ainda o deputado Collares, que havia sido governador do Rio Grande do Sul, responsável pelo descobrimento dos talentos de uma de suas auxiliares, uma certa senhora Dilma Rousseff. Mas, nos idos dos anos 70 do século passado, o então deputado Collares havia feito pronunciamentos naquela Câmara elogiando reportagens minhas feitas na "Folha de S. Paulo". Uma honra inigualável.
Mas o impressionante veio em seguida: Senhor Morsa disse que eu era a reencarnação da figura do grande líder brasileiro Getúlio Vargas. Fiquei curioso. Ele contou que havia notado minha presença no gabinete ao lado do seu, e que eu tinha, a seu ver, o mesmo jeito de andar do estadista que se suicidou ainda no exercício do poder. Achava ainda que eu tinha o mesmo olhar do presidente que governou o País diversas vezes acabando com a República Velha e dando os direitos aos trabalhadores brasileiros.

Agora que tem sido publicadas biografias do grande estadista, creio que está mais do que na hora de mergulhar nestas leituras e conhecer melhor ainda esta figura ímpar que, juro, nunca pensei em encarnar. Mesmo porque não acredito nessas coisas de vida pós mortem. A vida está aqui e agora.