terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Martha Rocha

Em 1954 no suntuoso hotel Quitandinha em Petrópolis (RJ) em meio a tanto reboliço deu-se início ao primeiro concurso oficial de Miss Brasil, que mandaria para os Estados Unidos aquela que concorreria ao título de Miss Universo. No júri, entre outros, o escritor mineiro Fernando Sabino. A representante da Bahia, Martha Rocha, surgiu imponente no palco. Não tinha noção de que se tornaria a partir dali nome de rua, de viaduto, de torta, de carro e até de marchinha carnavalesca. E foi sobre a marchinha que liguei para ela em nossos dias de hoje. Morava em Volta Redonda. Liguei porque fazia pesquisa para o livro do meu amigo Assis Ângelo, pesquisador de Música Popular Brasileira, que escrevia uma obra monumental, a vida do conjunto musical de mais longa trajetória no mundo, segundo o Guiness.
- Martha, você é uma mulher feliz? - disparei a certa altura, depois de ela confirmar baixinho sua idade, coisa que mulher alguma gosta de falar. Em 2016, ano que bate à nossa cara, ela completará 80 anos e, certamente, estará sendo lembrada pela mídia devido ao número redondo da efeméride.
- Sim, sou feliz, muito feliz, ela respondeu.
Conversamos sobre a gravação que ela fez com o conjunto musical de maior duração na história, em que ela fazia uma brincadeira sobre as famosas duas polegadas a mais. Para resumir o que houve naquele ano: Maria Martha Hacker Rocha vinha de Salvador ostentando o título de Miss Bahia, um dos grandes orgulhos até hoje daquele Estado que hoje tem como ícones Jorge Amado, Caribé, Caetano Veloso, seus orixás e seus terreiros de candomblé. O citado Fernando Sabino resumiu tudo assim: "Qualquer garoto sabe que a Martha Rocha deixou de ser Miss Universo por causa da grossura de suas coxas". De fato, naquela noite em Petrópolis ela perdeu o título para a norte-americana Miriam Stevenson. Tinha o que se chamou mais tarde de as famosas "duas polegadas a mais".
Pergunto para  Martha Rocha como é ser uma mulher bonita, linda, estonteante, maravilhosa.
- Ah, não sei..., respondeu reticente com modéstia.
Pouco lembrava do disco gravado com o conjunto musical paulista. O pouco que falou transcrevi para o grande livro do Assis Ângelo, "Pasqualin Gundun, os eternos Demônios da Garoa" que saiu em edição restrita, mas que a presidenta Dilma Roussef deveria mandar seu ministro da Cultura distribuir para todas as bibliotecas do Brasil.
Despedi da eterna Miss Brasil e ela disse mais ou menos algo como "se cuida, hein!". Uma adorável, deslumbrante, estonteante e bela criatura essa menina.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Maurício Tragtenberg

Conferência em Universidade de Minas Gerais nos tempos idos e vividos da ditadura militar (1964-1985). O Professor Maurício Tragtenberg, da Fundação Getúlio Vargas, convidado para falar sobre os rumos da política viu-se cercado de tantos alunos que não havia espaço para perguntas, mas sempre há alguém que fura o bloqueio e arrisca: "Já que o senhor está falando em instituições políticas, como definiria e mostraria como é a ditadura?". Prontamente ele respondeu: "Eles estão aí fora. Ao entrar aqui pedi licença, tinha uns brutamontes montados em quadrúpedes fortemente armados e mal educados que quase impediram a minha entrada". Propôs aos alunos que saíssem da sala e fossem ver de perto, ao vivo e em cores, a verdadeira cara da ditadura. Os alunos o acompanharam nesta caminhada e puderam ver a ditadura tal como ela era.
Generoso, me apresentou ao editor Caio Graco, da Brasiliense, que, por sua vez, me fez conhecer seu pai, o historiador Caio Prado Junior, de uma simpatia sem igual, com quem conversei por horas a fio enquanto aguardava despachar com um dos maiores editores brasileiros - por sinal, havia um estagiário que se tornou também bastante conhecido dos meios intelectuais e que fazia sua estreia nos meios, um certo Luiz Schwartz, mais tarde fundador e presidente da Companhia das Letras.
A última vez que reencontrei o Professor Maurício Tragtenberg foi na Livraria Cultura. Ele havia esbarrado em uma pilha de livros e deixou cair sem querer, é claro, mas ficou tão sem graça que se encontrasse um buraco tentaria se esconder.
O pai do músico experimental e reconhecido internacionalmente, Lívio, de quem ele se orgulhava, sempre foram ligados na imaginação das pessoas que os conheciam, pai e filho. Dois gênios. Das melhores safras, diria.

  Prof. Maurício Tragtenberg em uma aula na FGV falando de partidos políticos em ação no Brasil

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Guarda Luizinho

Um pouco de humor e descontração no regime militar (1964-1985), o agente de trânsito que fazia exatamente o contrário de um certo coronel Fontenelle, no Rio de Janeiro, que esvaziava os pneus dos carros e chamava os motoristas para briga. No início dos anos 70 do século passado, o PM Luiz Gonzaga Leite, que viria a incorporar ao nome o apelido de Guarda Luizinho no RG desde 1981, começou a trabalhar no semáforo das ruas Coronel Xavier de Toledo com o Viaduto do Chá, onde era a loja de departamentos Mappin. Fazia verdadeiros malabarismos, gesticulava, tinha carinho com as crianças, orientava as gestantes, distribuía sorriso para os aflitos. Dava entrevista. Era uma alegria só.
Guarda Luizinho era querido por todos os pedestres paulistanos que tinham de passar pela agitada rua do centro de São Paulo. Carregava nos bolsos uma pequena caveira de brinquedo, um guia de ruas e bilhetinhos com piadas educativas, tudo para alertar pedestres e motoristas sobre os perigos do trânsito. Instrumentos de trabalho que substituíram os talões de multas e as balas de revólver que ele descarregava ao ir para o trânsito. Houve tentativas de tirá-lo daquele lugar, mas ele sempre conseguia retornar para o mesmo cruzamento, onde ficou por exatos 10 anos.
A jornalista Renata Asp do "MetrôNews" o entrevistou, hoje aposentado, na reserva: "Comecei nas ruas em 1965 e nunca prendi ninguém. Nunca mandei, sempre pedi. Eu advertia, antes de haver a infração para não ter que levar multa. Achava que era melhor educar para a vida todo mundo, num tempo em que não havia ainda consciência e educação".
Guarda Luizinho foi transferido, mas um abaixo-assinado com 75.000 assinaturas pediu sua volta para o mesmo lugar. Ele conta: "Mais de uma vez fui surpreendido pelo secretário da Segurança Pública, coronel Antônio Erasmo Dias. Estava trabalhando no cruzamento e ele me prendeu, dizendo que eu só fazia palhaçada. Uma moça protestou, incitando os pedestres a virar o carro da autoridade. Fui parar na Secretaria junto com os pedestres que me acompanharam, aí me liberaram e voltei para o meu posto".
Hoje, passados tantos anos depois de virar notícia, Guarda Luizinho é um especialista em trânsito. Integrou o Conselho Tutelar, foi comerciante e dá palestras sobre sua área de especialização. Acha que o pedestre vive em perigo nas ruas de São Paulo. Conta que dados oficiais sobre acidentes de trânsito deveriam ser mais exatos, para que se pudesse entender melhor o perigo e pensarmos em novas medidas e novas políticas de segurança.
Guarda Luizinho, como o Guarda Belo, amigo do personagem de desenho animado Zé Coméia, é um protetor dos direitos humanos e talvez, quem sabe até por isso, cumpriu bem a sua função. Um herói da cidade paulistana.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Hamilton Almeida Filho

João Antonio, o autor do clássico "Malagueta, Perus e Bacanaço", quis que eu me aproximasse da turma que escrevia o jornal Ex, da imprensa alternativa, e recomendou que procurasse Mylton Severiano da Silva, o Myltainho, e foi o que fiz. Fui à sede do jornal. Myltainho estava aguardando a chegada de um dos principais editores daquele jornal, que funcionava embaixo de uma loja de conserto de sofá, no bairro do Bixiga. A redação estava lotada, era para ser uma reunião de pauta, mas quando Hamilton Almeida Filho, o HAF, chegou, tudo mudou. Ele contou para os colegas que estava de partida para a Folha de S. Paulo, convidado por Cláudio Abramo: "Esse pessoal percebeu que estamos quase no fim, a imprensa alternativa está acabando e eles me chamaram, como fizeram com o Tarso de Castro (do Pasquim) e, por isso, amanhã estarei de endereço novo".
Eu trabalhava na Folha nesta época e, por coincidência, ele foi meu chefe na editoria de Cidade. Discordava da edição de algumas reportagens que eu fazia, achava que não precisavam ser publicadas dia a dia, bastava dar destaque uma vez por semana, aos domingos, dia em que o jornal vinha mais gordo. HAF era uma lenda no jornalismo: tinha iniciado cedo na profissão, aos 16 anos de idade, e chegou a montar várias redações. Um dia estava vendo fotografias recém-tiradas quando se deparou com a aliança em um dos dedos das mãos do rei Pelé, que negava o casamento. Não deu outra. Furo internacional, porque o outro "Rei", Roberto Carlos, da Jovem Guarda, estava dando voltas pela Bolívia também se casando, e os repórteres acabaram descobrindo o corpo de um certo Ernesto "Che" Guevara abatido a tiros pelos rangers norte-americanos.
Quando esteve preso no Carandiru, por ter participado do teatro de José Celso Martinez Corrêia, HAF fez um jornal que acabou quando o redator foi solto, ao contrário do que normalmente acontece. De modo geral, jornalistas são presos por terem escrito algo que desafiou o Poder. Ele sempre esteve na contramão da História: uma vez, por não encontrar trabalho nos jornais, foi para a televisão Bandeirantes, onde fazia reportagens política. Ao introduzir certos assuntos ele dizia mostrando os indicadores: "Aspas". Muitos repórteres de TV me contaram que gostariam de fazer suas reportagens como ele, mas os editores diziam que HAF só tinha um.
Em um dos encontros onde cruzamos na reportagem de rua ele me contou que estava feliz com bons ganhos na produtora que montou com a mulher, hoje grande e reconhecida biógrafa, a colega Regina Echeverria que, quem sabe, escreverá sobre a vida de um dos maiores jornalistas que passou por aqui em tempos difíceis.
Hamilton Almeida Filho, o escritor João Antonio e Paulo Patarra, criador da revista Realidade

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Zé do Caixão

Todo fim de semana pegava a ponte aérea Rio-São Paulo, participava de um jornal mensal carioca, "Repórter" e fui encarregado por aqui, em São Paulo, para conversar com um colaborador e colunista, José Mojica Marins, que assinava como seu principal personagem elogiado por Glauber Rocha, Zé do Caixão. Ele deveria escrever coisas monstruosas, surreais, mostrar quem sabe imagens do inferno em que estávamos vivendo, a ditadura militar. Mas não. O que o estranho personagem de si mesmo escrevia era suas supostas memórias sexuais, em que relatava, por exemplo, como sua babá o levou a fazer sexo aos seis meses de idade. O editor Luiz Alberto Bettencourt me encarregou de conversar com Zé do Caixão e dispensá-lo do jornal. Liguei para ele e fomos nos encontrar em um boteco pelos lados da Santa Casa.
Pedimos dois cafés puros, iniciei a conversa dizendo que a nossa conversa tinha por finalidade dispensá-lo da função de colunista do jornal. Zé do Caixão quis saber a razão. Aí entrou em cena aquilo no que ele é craque e eu reles amador: a representação como em um palco. Fiquei com a cara mais triste do mundo, cabisbaixo, diminui o tom de voz e quase aos sussurros falei: "Lamento...Deve ter outras razões que nós desconhecemos para mandar você embora". Ele insistiu. Menti. Disse que eram os militares, os censores que haviam pedido sua cabeça. O jornal não era censurado, ele ia para as bancas e se os militares achassem que deveria ser apreendido na hora em que estavam sendo entregues as viaturas iam recolhendo. Zé do Caixão elevou a voz: "Eu sabia! Eu sabia! Sabia que incomodava os malditos militares. Eles pediram minha cabeça. Eu incomodei. Foi por isso. Só por isso".
Duas prostitutas começaram uma briga que as levou ao chão. Uma bateu na outra com sapato salto alto. Houve sangue. Alguém separou as mulheres. Uma xingou a outra. Alguém ficou sem sapato porque o salto caiu na rua. Elas foram embora. Daí, Zé do Caixão começou a contar vantagem. Disse que sempre que via briga de mulheres estendia a mão e lançava o desafio: "Quem cuspir aqui ganha a briga sem necessidade de dar tapas e socos". Aí ele disse que tirava a mão e uma acabava cuspindo na outra, dando início a uma briga descomunal. Duvidei que ele fizesse isso. Pelo menos na nossa frente ele nada fez. "É que eu estou emocionado, cara, sabia que os militares me odiavam, que eu os incomodava, agora tenho certeza absoluta", disse.
De vez em quando o vejo pelas ruas do centro de São Paulo. Moramos hoje bem perto um do outro. Uma vez o encontrei em uma formatura da minha filha Juliana, turma de Direito da PUC. Ele estava por lá. Um de seus filhos também estava se formando, coincidentemente na mesma turma. Um colega da Juliana ao reconhecer aquela figura sem máscara nem unhas compridas deu um tapa na testa, foi ao banheiro e ao olhar no espelho disse: "Bebi demais, acho que exagerei na dose hoje. Não é possível, estou vendo o Zé do Caixão, estou num fogo danado. Não pode ser verdade".

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Carlos Rangel

Aprendi muitas lições com o colega Carlos Rangel nos tempos em que trabalhamos juntos na Folha de S. Paulo, a partir de 1975. Tarimbado, ele costumava chamar a todos de "coleguinha", "companheiro", "amiguinho", talvez por não lembrar do nome de quem estava ali à sua frente ou que passavam por ele a toda hora. Alto, agitado, sempre com pressa, carregava uma pequena pasta onde guardava suas anotações e suas lembranças. Teve uma tragédia nos cafezais paranaenses, uma geada pôs tudo abaixo e ele foi enviado para cobrir. Ao chegar na cidade, montou verdadeiro central de informação formado aos poucos e talvez até impensadamente. Ele ficava no hotel e os demais repórteres lhe passavam as informações que ele coletava e transmitia via telefone para a Folha. Ganhou o Prêmio Esso com essa cobertura.
Passou por todas as redações de jornal em São Paulo. Trabalhou no Diário Comércio e Indústria onde foi editor de economia "sem conhecer sequer o abecedário do economês", dizia; Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e revista O Cruzeiro. Ao chegar aos 40 anos de idade, morando no Rio de Janeiro, sua terra natal, para onde voltou em 1979, reuniu algumas de suas reportagens favoritas e ele mesmo publicou um livro que pagou com parte do seu salário, parte da antecipação das férias e do 13o. além do dinheiro do aluguel da casa. Seu filho, de seis anos à época, perguntava o que ele fazia no jornal para se ausentar tanto. Dividia seu tempo entre a redação do jornal e da editoria política do programa "Abertura" da rede Tupi de Televisão, dirigido por Fernando Barbosa Lima que, em seu livro de memória fez elogio a este grande repórter dizendo que ele o ajudou bastante a formatar um dos melhores programas de TV de todos os tempos, que tinha entre outros apresentadores nada menos que Glauber Rocha.
 Carlos Rangel, autor do livro "A hora de enterrar os ossos" de 1978, antologia de suas reportagens

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Tavares de Miranda

Bela figura sempre de terno, normalmente escuro, passávamos pela redação da Folha de S. Paulo, anos 75 do século passado, trocávamos algumas palavras, assuntos nada importantes para o maior e mais respeitado colunista social paulistano, Tavares de Miranda. Eu colaborava com o envio de algumas reportagens que fazia especialmente para os jornais Opinião e depois Movimento, ambos da imprensa alternativa, censurados pela ditadura militar.
Uma vez escrevi o que um quatrocentão estava aprontando. Recorri ao tarimbado Zé Tavares, que me deu todo o passado da figura em questão. Por exemplo: um dia, para infernizar a vida de outro milionário, comprou uma caixa de sal de frutas e, de helicóptero, jogou aos poucos na piscina daquele que falava mal de sua vida. Um desperdício e tanto, convenhamos, fazer isso logo em uma piscina no Guarujá. Escrevi a reportagem que passou pelo crivo dos censores que não tinham ideia de quem era o tal quatrocentão paulistano e mostrei a matéria para ele que viu, achou graça e me devolveu ali mesmo, perto de sua mesa. Muitas vezes eu o via selecionando as fotografias que algum fotógrafo havia tirado nas noitadas e madrugadas frias onde tudo era alegria. Uma festa sem fim.
Motoristas da Folha me contavam que às vezes o colunista cochilava e, ao acordar, com o carro amarelo parando repentinamente, fechava a mão e, em punho, colocava para fora do carro aos gritos: "Cretino, safado, mau caráter". Depois, virava para o lado e voltava a dormir.
Lembro de Tarso de Castro assumindo a editoria Ilustrada, com dois diagramadores mostrando o que deveria sair ou permanecer naquele caderno. Ao passar pela página 2 do Tavares de Miranda disse apenas: "Nesta página não mexo, não sou louco..."
Trabalhei muitos anos depois com a filha do Zé Tavares, Ana Tavares de Miranda, responsável pela comunicação do presidente Fernando Henrique Cardoso em seus dois mandatos. Sei que ela hoje reside no Rio de Janeiro.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Boris Casoy

Trabalhamos juntos na mesma redação da Folha nos idos de 1975 e na primeira vez que conversarmos lembrei que um amigo com quem havia estudado em Santos, Ivan Camargo, que tinha nascido em Oswaldo Cruz, já haviam sido colegas em rádio. Boris Casoy lembrou, sim, do meu amigo radialista, como ele, de bela voz sonora e de tantos casos vividos por emissoras.
Na época Boris editava a coluna de Política "Painel" e eu trabalhava na editoria de Cidades. Um deputado que chegou à presidência da Assembleia Legislativa de São Paulo havia feito compra de milhares de calcinhas na zona franca de Manaus e mandado a conta para a Casa que pagou mas, descoberto, o cassou. Meses depois eu o vi comandando uma reunião na zona leste paulistana. Contei para o editor de "Painel" que não se interessou pela nota: "Não bato em quem está no chão", ensinou.
Antes de ir para a redação da Folha que era dirigia por Cláudio Abramo, eu havia trabalhado 6 meses na Agência Folha, no mesmo quarto andar da alameda Barão de Limeira, onde escrevia em laudas com 7 cópias, que eram distribuídas para os jornais do grupo. Tive como colega uma certa Dora Tavares de Lima, mais tarde a melhor colunista de Política segundo Millôr Fernandes, Dora Krammer, com quem, 20 anos mais tarde, jantei em Brasília em sua casa onde conheci o marido Paulo Krammer, professor da Universidade de Brasília e um filho pequeno (mais tarde ela teve outra filha). Boris, já  na função de diretor de redação (substituiu Claudio Abramo), me contou ter incorporado por conta própria o tempo para fins de aposentadoria, generosidade de sua parte a qual agradeci.
Fui embora da Folha e trabalhei em outros jornais. Tentei voltar, 5 anos mais tarde, e procurei o diretor Boris Casoy, que me enrolou por um tempo me recebendo muito bem em sua sala, onde mandava servir água e cafezinho, mas nada de me contratar. Certo dia ele, que estava cercado por jovenzinhos ávidos de poder com seus manuais e outros mandamentos como atribuição de nota para cada reportagem feita, outra para a publicada e outra ainda para o que havia sobrado de material, enfim, uma reengenharia total, me contou que haviam me queimado intencionalmente. Foi assim: "Numa reunião aqui na Folha alguém disse que você havia jogado bomba, enfrentado a ditadura de maneira valente e destemido, mas eu desmenti quem o acusava, disse que você nunca havia participado em luta alguma contra a ditadura, mesmo porque você é e era muito jovem (estávamos em 1984), esse pessoal não sabe o que fala, provavelmente deve ter ouvido falar. Mas fique tranquilo que eu o defendi de todas as acusações que fizeram maldosamente contra você".  Fiz uma brincadeira naquela época, mas que, pensando bem, não faria nunca mais: "Ainda bem que tenho quem me defenda de falsas acusações, ainda bem que tenho amigos como você". Ironizei ao invés de apenas demonstrar gratidão, foi maldade minha. Fazia referência implícita a algo que tem feito muito mal a Boris: a revista O Cruzeiro estampou uma série de fotografias em capa denunciando integrantes do Comando de Caça aos Comunistas - CCC, e no meio deles estava o então estudante do Mackenzie Boris Casoy, fato que ele me disse inúmeras vezes ser uma mentira deslavada, uma falsa acusação.
Boris Casoy é hoje o melhor ancora da TV brasileira, talvez o único, se deu bem, acompanhei sua entrada neste novo meio de comunicação e torço para que ele (que tem 10 anos a mais que eu, contas feitas pelo próprio), faça seus comentários - mesmo não concordando com ele, porque sua opinião manifestada publicamente mostra que ele é, acima de tudo, um homem de coragem. E isso não é uma vergonha.

domingo, 1 de março de 2015

No tribunal da inquisição

Meu colega jornalista Pedro Cafardo, hoje no Valor Econômico, com quem trabalhei no Estadão e na Folha, observou que eu não tinha idade para ter participado da luta armada contra o regime militar, afinal em 1964 tinha 12 anos de idade. Mas nesse período fui submetido a verdadeiro interrogatório como se estivesse em um tribunal da inquisição. Tudo por obra e graça de um professor do antigo curso ginasial de nome Sérgio.
As carteiras em que sentávamos, ginásio do governo, eram de madeira e tinham pelo menos dois lugares onde se colocavam tinta daquelas que vinham em um vidrinho e era derramado para que o aluno lançasse mão ao manusear as canetas de pau com pena de aço. Como na época já usávamos caneta esferográfica, os lugares das tintas ficaram sem função. Eram fechadas e nada se colocava ali.
Minhas aulas eram no período da manhã. À tarde outra turma entrava na sala. Pelo que percebi, o banco era ocupado por uma menina que, em minha imaginação, era linda. Um dia deixei um bilhete para ela. Perguntei seu nome. Para minha surpresa ela respondeu e começamos ali uma troca de papo com perguntas e respostas como fazem dois namorados. Tudo no terreno platônico, é claro, porque nunca a vi pessoalmente.
Num belo dia à saída fui chamado pelo tal professor Sergio para uma conversa reservada na diretoria. Ele mostrou um bilhete com palavrões de deixar qualquer um vermelho de vergonha. Me acusou de ser o autor de tal monstruosidade. Foi assim no primeiro dia. No segundo dia novamente fui submetido a verdadeiro interrogatório. Ele queria que eu confessasse. Como não tinha sido autor da horrível façanha, não assumi a culpa. Neguei. Na sexta-feira, após uma semana de tentativa e já com dor de cabeça por ter sido interrogado por aquele Torquemada da Santa Inquisição, mais uma vez e agora em definitivo eu neguei a autoria do tal disparate.
Não convencido, o carrasco arquivou a acusação por escrito que não assinei e ameaçou: "Um dia sua consciência o acusará".
Terminado o ginasial fui ao colégio, onde tive aula com inúmeros professores do mais alto nível. Uma delas de quem fiquei amigo um dia me convidou para seu casamento. E ao ver o nome do padrinho, desisti. Era o tal professor Sérgio quem assinaria como testemunha. Não fui.
Muitos e muitos anos mais tarde, na Era Facebook, contei para ela o episódio. A querida professora explicou que não tinha amizade muito aprofundada com o Sérgio, tinha sim amizade com a esposa dele, uma doce criatura. Paciência. Creio que participei de um jogo cruel e desigual com este inquisidor nos tempos da ditadura militar.

Neste tipo de carteira é que troquei correspondência e acabei acusado por um sádico professor

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Di Cavalcanti

Tarde fria, chuva fina e ela sentou-se a meu lado, no banco de terminal rodoviário no centro da capital paulista. Era uma figurinha pequena e desculpou-se por tomar pequena parte do banco de pedra. Falou que a cidade hoje era bem diferente dos tempos em que vivera com seu marido, um músico de sobrenome Puccini, como o compositor de óperas italianas. Tinha ido a Lucca, na Itália, algumas vezes visitar sogra e cunhados, por quem fora bem recebida. Perguntou se eu já tinha ido à bela Itália.
O Puccini dela tocava violino e se apresentou em vários shows. Deu a ela as maiores oportunidades de sua vida, como a de ter conhecido Ataulfo Alves, com quem dividiu o palco. Claro que seu marido não ficava na frente, tocava lá atrás, porque o que estava em moda era mesmo o violão. Nos tempos da Jovem Guarda ele chegou a se apresentar em vários shows comandados pelo trio Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléa. Também se apresentou em teatros lotados. Ela sempre viajava com ele.
Certo dia conheceu e frequentou também a casa de artistas plásticos como Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti. Foi aí que interrompi sua narrativa para perguntar: "A senhora conheceu o grande Di Cavalcanti?". Sua resposta, meio envergonhada, um misto de orgulho e saudosismo: "Vou lhe contar um segredo guardado há mais de meio século: posei para ele. Posei nua. Ele pintou um dos quadros de suas mulatas comigo, fui ao seu estúdio a pedido de meu marido e por semanas fiquei ali, como vim ao mundo e ele entregue aos pincéis".
Quis saber mais do grande mestre da pintura. Lembrei que vi uma das mulatas em exposição na Bolsa de Mercadorias e Futuro, em São Paulo, e folheei mentalmente alguns de seus livros em que aparecem as famosas mulatas. Nenhuma delas me lembrava sua musa-maior Marina Montini, a mais conhecida delas, recentemente falecida. "Li algo a respeito", disse a senhora Puccini.
Virei e não vi mais a mulata de Di Cavalcanti. Tinha sumido na São Paulo de hoje, não de outrora, da garoa.

Emiliano Di Cavalcanti, autor de pintura, escultura e murais magníficos, surpreendentes mesmo

sábado, 17 de janeiro de 2015

Raimundo Rodrigues Pereira

Trabalhávamos juntos em fechamento de algumas reportagens altas horas da madrugada e Raimundo Rodrigues Pereira, na redação do jornal Movimento, dizia como quase uma confissão: "Será que vou ficar velhinho, de cabelos brancos, fazendo jornal e enfrentando a censura?". Ingenuamente e de olhos esperançosos, certo de que esse dia viria, eu respondia: "Vamos comemorar o fim da censura brevemente". No dia em que caiu a censura ele me chamou e fui à redação fazer algo hoje politicamente incorreto: soltar um balão escrito algo como "Acabou a censura". Claro que era algo simbólico, hoje não se admite, nem ele nem eu nem ninguém admite que alguém solte balão, olha os riscos. Os riscos, sempre eles.
Raimundo Pereira a quem fui apresentado por Jair Borin é um dos jornalistas que mais admiro na vida. Cercou-se de pessoas também competentes que tanto o admiraram como Tonico Ferreira (hoje na Globo), Teodomiro Braga, Sérgio Buarque, Tim Urbinatti, Duarte Pereira, Sebastião Netto, Paulo Barbosa, Duarte Pereira e Murilo Carvalho, entre outros, profissionais também da melhor qualidade. Uma manhã ouvi o saudoso e querido Flávio Carvalho tomar uma bronca pelo jornal ter sido furado sabe por qual concorrente? O The New York Times.
Certa vez Raimundo liderou um movimento formado na Assembleia Legislativa paulista para ajudar a esclarecer quem estava tocando fogo nas bancas de jornais. Pediu que arrumássemos dinheiro para ajudar as vítimas. Ninguém poderia ficar só no discurso, era preciso fazer alguma coisa.
Raimundo Pereira nunca disse nada para os companheiros da cooperativa que mantinha de pé o semanário, mas fiquei sabendo que ele vendeu um apartamento para pagar as dívidas do jornal. Tinha uma família com mulher e filhas que dependiam do dinheiro fruto do seu trabalho, mesmo assim não pensou duas vezes em se desfazer de parte do patrimônio amealhado durante uma vida inteira.
Rodávamos o jornal e ele parava nas madrugadas para comermos um sanduiche que àquela altura era uma iguaria.
Nunca deixei de receber pelos trabalhos, nunca fiz de graça, tudo foi religiosamente pago. Diziam que o jornal era mantido pelo "ouro de Moscou", mas isso nunca existiu, era invenção da feroz direita sanguinária capaz de difamar, de torturar e de matar em tempos da ditadura militar que infelicitou esse País.